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Um dia de estreia em Aix-en-Provence

de Fabiana Crepaldi

Quarta ópera da dupla George Benjamin e Martin Crimp, a obra estreou, com grande sucesso, na 75ª edição do Festival d’Aix-en-Provence.

Aix en Provence, 23/07/2023 - Neste pequeno ensaio, abordo a que, a meu ver, foi a grande marca e o ponto alto desta edição: a estreia mundial de Picture a Day Like This, da já consagrada dupla George Benjamin e Martin Crimp.

Quando penso no Festival d’Aix, três ideias me vêm à mente: Mozart (um compositor quase sempre presente), estreias mundiais e produções modernas, que na maioria das vezes podem ser classificadas como Regietheater – uma forma autoral de fazer teatro que não se resume à mera ilustração do libreto. Tudo isso esteve presente nesta que foi a minha primeira – espero que de muitas – ida ao evento.

Mozart, é bem verdade, dessa vez não deve ter ficado muito satisfeito. Così Fan Tutte – título que tem uma importância especial no festival, que esteve presente em sua primeira edição há 75 anos e que lá ganhou uma ótima produção de Patrice Chéreau em 2005 – foi confiada a Dmitri Tcherniakov (direção cênica) e a Thomas Hengelbrock (direção musical); era uma das produções mais aguardadas da edição deste ano. Foi uma decepção geral, no entanto: cenicamente, embora com o selo Tcherniakov de qualidade, era impossível fechar os olhos às diversas incoerências; musicalmente, cantores com problemas de técnica inaceitáveis em um evento desse porte, com direito, inclusive, à afinação imprecisa.

Picture a Day Like This não foi a primeira obra de Benjamin e Crimp a estrear em Aix, esse terreno fértil não só para a produção de vinhos e lavanda, mas também para novas óperas. Foi lá, em 2012, que estreou o primeiro grande sucesso da dupla: Written on Skin. Outra estreia, mais recente, que ganhou grande e merecido destaque foi, em 2021, a da impactante Innocence, última obra da compositora Kaija Saariaho, que nos deixou em junho deste ano.

Além de Written on Skin e Picture, Benjamin e Crimp contam com duas outras obras em seu catálogo: Into the Little Hill, que estreou em Paris, no anfiteatro da Opéra Bastille, em 2006, e Lessons in Love and Violence, criada em 2018 na Royal Opera House, em Londres. A primeira coisa a saltar aos olhos é que, das quatro óperas dessa dupla inglesa, três estrearam na França – país onde se deu boa parte da formação de Benjamin, que foi inclusive aluno de Messiaen – e apenas uma na Inglaterra.

Se Written on Skin e Lessons in Love and Violence são tragédias psicológicas violentas, com direito a traições e ciúmes, opressivas tanto do ponto de vista musical quanto em relação ao enredo, o ambiente de Picture a Day Like This é bem diferente: retoma o tom camerístico e de conto de fadas de Into the Little Hill. O que todas as óperas têm em comum, porém, é que tratam de temáticas extremamente contemporâneas a partir de histórias antigas, geralmente medievais. Está, pois, presente nesse conjunto a essência atemporal da alma humana.

A exemplo dos contos de fadas, em Picture os personagens não têm nomes próprios, mas são nomeados a partir de alguma característica (sugerindo tratar-se de arquétipos, e não de uma pessoa específica), o personagem principal está em uma situação de vulnerabilidade (não é órfão, como é comum nos contos de fadas, mas o oposto: perdeu um filho) e a narrativa não é realista, há o elemento mágico, ou melhor, a fantasia. Além disso, há um relato de aprendizagem, através de uma sucessão de encontros, nos moldes de Alice no País das Maravilhas e Alice através do Espelho, de Lewis Carroll.

Como nas Alices, em Picture os encontros ocorrem na mente da protagonista, uma Mulher que, diferente de Alice, não tem nome. Também como em Alice, quem é submetida a essa aprendizagem é um personagem feminino, e não o jovem herói de um típico romance de formação (Bildungsroman) do século XIX. Ao contrário de Alice, no entanto, em Picture a protagonista não é uma menina, mas uma mulher jovem: uma mãe que perdeu o seu filho pequeno (Mal meu filho havia começado a falar frases completas, ele morreu”).

No programa de sala, Martin Crimp escreveu que seu ponto de partida foi a fábula popular A Camisa do Homem Feliz, que narra a história de um rei que padecia de uma doença mortal (em algumas versões, como a presente em Fábulas Italianas, de Italo Calvino, era o filho do rei que estava doente e deprimido) e que, para se curar, precisava trocar de camisa com um homem realmente feliz. Em cada homem com quem se encontrava, o rei descobria uma frustração. Desanimado, foi caçar para tentar se distrair e ouviu um camponês cantando, feliz da vida. O rei foi ter com ele e perguntou-lhe se ele queria segui-lo para a capital, ao que ele respondeu (segundo a tradução em português do livro de Calvino): (…) não mesmo, obrigado. Não trocaria de lugar nem com o Papa. (…) Estou contente assim e basta”. O rei não cabia em si de alegria: felizmente, havia encontrado um homem feliz! Logo percebeu, contudo, que o homem feliz não tinha camisa.

Como a história é um tanto moralista, Crimp começou a fazer uma pesquisa sobre o tema. Logo se deparou com o Romance de Alexandre, que data de aproximadamente 300 a.C. e conta a vida de Alexandre, o Grande. Quando estava para morrer, Alexandre escreveu à sua mãe recomendando que convidasse para o seu funeral, independente da classe social, todas as pessoas que nunca tivessem conhecido a infelicidade. Resultado: o funeral ficou vazio, mostrando à mãe infeliz que a dor e a morte são universais.

Para Crimp, essa passagem do Romance de Alexandre é uma severa lição de estoicismo, impregnada de um espírito militar. Sua busca continuou. Finalmente, ele achou um texto com uma temática próxima a esse trecho do Romance, mas, segundo ele, muito mais misterioso e muito mais humano: o conto budista do grão de mostarda, que conta a história da jovem Kisha Gotami, cujo filho havia morrido. Desesperada, a Kisha Gotami saiu com a criança no colo em busca de um remédio, recomendaram-lhe que fosse ver o Buda. O Buda lhe disse que o filho e ela podiam ser curados por um simples grão de mostarda branca, mas que esse grão tinha que vir de uma casa onde nunca tivesse entrado a morte. Ela saiu de casa em casa, mas todos sempre lhe ofereciam o grão com a ressalva de que alguém já havia ali morrido. Como a mãe de Alexandre, mas de modo mais humano, Kisha Gotami aprendeu que a dor e a morte eram universais. No fim da história, ela se consagra à religião e, no templo, se dá conta de que a duração da chama de cada lamparina varia, como acontece com a vida dos seres humanos.

Em Picture, essas três parábolas, de tempos, sociedades e culturas tão distintos, se transformam e vêm ao encontro da nossa cultura e do nosso tempo. A maior fonte de dor continua lá representada através da mãe com o filho morto – stabat mater dolorosa.

Essa jornada psicológica, como observou Benjamin em entrevista publicada no programa de sala, nada tem de realista. A encenação minimalista e de bom gosto de Daniel Jeanneteau e Marie-Christine Soma – que têm participado das criações das obras de Benjamin e Crimp e que, além da direção cênica, assinam a cenografia, a dramaturgia e a luz – ambientou a trama na mente da Mulher: em volta do palco, uma parede de metal confina e espelha a cena de modo um pouco embaçado. O cenário ganhou mais força com os ótimos e significativos figurinos de Marie La Rocca.

Théâtre du Jeu de Paume em Aix-en-Provence

Com orquestra composta por cerca de vinte instrumentistas – na qual predominam madeiras e metais, e não as cordas – e com apenas cinco solistas em cena, a ópera tem dimensões e sonoridade camerísticas. Não à toa, o espaço escolhido para a estreia, que contou com a Mahler Chamber Orchestra dirigida pelo próprio compositor, foi o pequeno e aconchegante Théâtre du Jeu de Paume, um teatro no estilo italiano, inaugurado em 1787 e totalmente renovado em 2000, cuja capacidade não chega a 500 pessoas. O nome se deve ao fato de que foi construído no lugar em que havia um Jeu de Paume (um jogo antecessor do tênis) real. A foto acima mostra o teatro mais ou menos a partir do local de onde assisti a Picture. Com ingressos esgotados, teatro lotado e em dia de forte calor, o ar-condicionado foi rapidamente vencido, mas isso não intimidou o público, que assistiu, compenetrado, à última récita dessa envolvente ópera.

Quando falamos em ‘teatro musical’, isso evoca em meu espírito, antes de qualquer coisa, a voz humana: essa coisa maravilhosa, eterna e tão majestosa. Eu a considero verdadeiramente como o elemento central”, declarou Benjamin em entrevista publicada no programa de sala. As palavras são muito importantes, evidentemente, mas elas devem ser cantadas, verdadeiramente cantadas”. Para ele, quando um cantor fala durante uma ópera, como ocorre em Carmen ou em A Flauta Mágica, há um rompimento, algo parece se quebrar.

Sobre o canto, Benjamin afirmou que duas coisas o incomodam em obras contemporâneas. Uma delas é a escritura vocal “em ziguezague”, com grandes saltos, tão em voga. Outra é que, em muitas obras, os cantores têm muito vibrato, a ponto de ser difícil de definir em que nota eles estão cantando. Ele explica que quando o acompanhamento era simples, como ocorria na época de Verdi, por exemplo, era fácil saber a nota. Mas na música moderna, as linguagens harmônicas não são mais as mesmas e eu suspeito que os cantores não sabem mais precisamente em que altura devem cantar: esse vibrato traduz uma certa insegurança e uma falta de confiança”. É, pois, necessário ajudar o cantor, mas sem que o canto seja dobrado pela orquestra, sem usar uma linguagem rítmica ou musical do século XIX. Como explica o musicólogo Pierre Rigaudière, também no programa, citando o próprio Benjamin, o compositor recorre a uma escritura orquestral polifônica que atua como uma caixa de ressonância seletiva a fim de que ‘as linhas vocais estejam claramente incrustadas no tecido orquestral e no ambiente harmônico, tanto para o cantor quanto para o público’”.

O resultado disso é uma música claramente moderna, contemporânea, inovadora, que nos envolve sem que as suas dissonâncias causem uma sensação de incômodo, sem que fiquemos sem rumo em meio à complexidade rítmica e melódica. A orquestra, polifônica, é transparente e jamais encobre os cantores. O canto tem elementos do recitativo secco e momentos de um arioso fluido, com direito até a alguns melismas em momentos específicos – indicando, sobretudo, êxtase ou insanidade.

Como Mozart e tantos outros grandes compositores da história, Benjamin compôs pensando nos cinco intérpretes que haveriam de criar a sua ópera, em suas características vocais. Essa é uma experiência que tanto os cantores quanto nós, o público, só podemos vivenciar com obras contemporâneas: ouvimos as obras como e para quem foram compostas.

Em entrevista publicada na edição de junho da Opéra Magazine, Benjamin contou que viu Marianne Crebassa, criadora da protagonista de Picture, em um recital na Wigmore Hall, em Londres, e a achou fenomenal, com graves impressionantes. Em Picture, em cada encontro da Mulher em busca da pessoa feliz, a tessitura vai caminhando para o grave: no início, uma voz mais leve e delicada a apresenta à suposta pessoa feliz, como que pedindo licença, mas a gravidade da situação, o drama daquele que, na realidade, é um infeliz, leva a cantora à tessitura grave.

Crebassa é realmente fenomenal, foi a segunda vez que tive a sorte de vê-la ao vivo: a primeira foi em 2018, como uma inesquecível Mélisande no Pelléas et Mélisande, de Debussy, da Staatsoper de Berlim, justamente a ópera que Benjamin diz ser a sua favorita e que nitidamente influenciou a sua escrita, sobretudo das linhas de canto. Crebassa tem uma voz homogênea, de ótima projeção, com bom peso na região média-grave. Mais importante que isso: sua voz tem nuances, possui um rico colorido, ela sabe ter certa gravidade, manter a tensão do personagem, sem perder o brilho de seu belo timbre.

A ópera, que dura cerca de uma hora, é constituída por sete cenas curtas. Na primeira e na quinta cenas, a Mulher, que além de protagonista é narradora, está sozinha; justamente a quinta cena, na qual ela canta a sua ária, ocupa uma posição central e pode ser considerada um ponto de inflexão.

Marianne Crebassa na primeira cena de Picturea Day Like This

A música começa discretamente: uma única nota dá o tom e fica soando um tempo. A Mulher inicia o seu canto, a cappella, contando sobre a sua criança com a doçura de uma canção de ninar que, rapidamente, ganha um toque grave e trágico (than he had died), e procede como uma lamentosa cantilena. Ela não nos diz o motivo da morte: só fala da raiva que sentiu, mas que, mesmo assim, cumpriu o seu papel: lavou-o, e o enrolou com a seda habitual para queimar” e fechou os seus olhos. Conta, ainda, que mulheres vieram buscá-lo – buscá-lo para ser queimado”, sugerindo um ritual de cremação de alguma religião oriental, sobretudo da Índia, como Budismo, Hinduísmo, Sikhismo… Foi aí que ela disse não!” – e foi nesse momento que a orquestra começou a soar, discretamente – e questionou: a terra fria – caules mortos de flores voltam à vida – por que não – por que não meu filho?” Então – nos conta sob uma música com mais ritmo, mais cores e certa ironia, certo tom de aventura — uma das mulheres sorriu e falou-lhe:

Ache uma pessoa feliz neste mundo
e arranque um botão da manga de sua roupa.
Faça isso antes de anoitecer
e seu filho viverá”

Ao dizer isso, ela lhe deu uma página, arrancada de um velho livro, que continha uma lista de candidatos a pessoas felizes.

Nesse curto solilóquio, já é possível perceber o estilo do recitativo empregado por Benjamin – cantado, sem aquela infindável e monótona repetição da mesma nota que há em tantas obras modernas antimusicais – bem como a variedade de coloridos do canto de Crebassa: ela pronuncia cuidadosamente cada palavra, cada uma das frases do texto – frases estas, em geral, curtas, truncadas até. O interessante peso dado a cada consoante, a forma acentuada como as consoantes soam no canto, além de facilitar a compreensão do texto, conferem força e vitalidade ao recitativo.

Desde essa primeira cena já chama a atenção o efeito visual de cantores e atores se misturando aos seus vultos nas paredes metálicas – efeito que será acentuado nas cenas seguintes.

A Mulher parte em busca do botão da manga da camisa da pessoa feliz. Antes dos três primeiros encontros, ela segura a folha e a lê, e nas três vezes em que faz a leitura, ouvimos mais ou menos o mesmo recitativo, no estilo de uma proclamação, acompanhado por metais em surdina, conferindo unidade e coerência ao discurso musical. Outra característica comum a todos os encontros, sobretudo quando estão caminhando para o fracasso, é um discreto soar de sinos.

Marianne Crebassa, Beate Mordal e Cameron Shahbazi na segunda cena de Picturea Day Like This

Na segunda cena, a Mulher tem o seu primeiro encontro: um casal de amantes, aparentemente muito felizes, mas só aparentemente. Na verdade, eles não se amam e acabam brigando: enquanto a amante sonha com um relacionamento, se não estável, no mínimo exclusivo, o amante é adepto do poliamor. Nesse momento, com os amantes sob os focos de luz, os reflexos nas paredes metálicas parecem ganhar até mais relevância, povoando a cena.

Inicialmente, o ambiente musical é lírico, fluido; a combinação das vozes dos amantes, a soprano norueguesa Beate Mordal e o contratenor persa-canadense Cameron Shahbazi, como na música barroca, cria um ambiente sensual, de uma juventude viril. Em polifonia e com notas longas, seus belos cantos ora se complementam, ora se entrelaçam, enquanto a orquestra cria um clima quase místico – isso, claro, até o momento da discussão. Na entrevista à Opéra Magazine, Benjamin mencionou que as Fantasias para violas da gamba de Purcell mudaram a sua vida de compositor. A forma como as vozes dos amantes interagem no início da cena, que contrasta com o canto da Mulher, traz nítidos ecos dessa obra genial de Purcell. Quando os amantes se põem a discutir, a linha melódica do amante continua sensual, com notas longas – ele não se abala muito –, mas o canto da amante se altera consideravelmente, suas linhas deixam de se combinar e passam a contrastar.

Marianne Crebassa e John Brancy na terceira cena de Picturea Day Like This

Decepcionada com seu primeiro encontro, a Mulher parte para o segundo da lista: um artesão que chega aprisionado em um cubo acrílico e que se diz extremamente feliz. Ele, porém, é feliz à base de medicamento psiquiátrico, pois foi substituído por máquinas na fábrica onde trabalhava, o que o arruinou e o levou à loucura. O ambiente musical é mais misterioso, mais sombrio, e o canto do barítono, melismático em alguns momentos, abrange quatro oitavas: da região grave até o registro agudo. O excelente barítono americano John Brancy passeia por toda a sua tessitura e chega ao falsetto com total homogeneidade, sem qualquer quebra em seu registro. Quando começa a entrar em um estado de excitação, seu canto, mais duro e enfático, perde quase que totalmente o legato. Na orquestra, a música também se torna mais forte e dissonante, criando um ambiente de suspense que, após o artesão mencionar suas inúmeras tentativas de suicídio, termina de modo fúnebre (No one will let me die). Como antes ele fazia botões, em sua manga havia milhares de botões de todos os tipos – mas ele é um pobre infeliz, uma vítima do progresso e da sociedade.

Beate Mordal, Cameron Shahbazi e Marianne Crebassa na quarta cena de Picturea Day Like This

A terceira da lista, uma compositora extremamente bem-sucedida, famosa, ativa, que aparentemente tem tudo para ser feliz, mas é insegura e autocentrada demais para isso – em seu íntimo, é descontente, teme virar uma nota de rodapé da história e é solitária. Mordal e Shahbazi retornam ao palco, é o mesmo par de soprano (a compositora) e contratenor (seu assistente) do primeiro encontro. Eles não param de andar – sem sair do lugar, mas sempre simulando pressa, e uma pressa que, literalmente, não os leva longe. Mais uma vez, seus cantos se complementam. Na orquestra, um som que sugere uma sinfonia contemporânea, com as cordas, sobretudo os violinos, se destacando em uma espécie de ostinato. Não resisto a destacar o toque de Bossa Nova que surge quando a compositora cita o Rio de Janeiro na lista das cidades em que já esteve! No momento em que ela diz que, mesmo com toda a fama, não é feliz, é como se as cordas desafinassem. A melodia parece se tornar sem rumo, sem brilho. 

Marianne Crebassa durante a sua ária, na quinta cena de Picturea Day Like This

Cansada, desanimada, a Mulher se lamenta em uma impactante ária, um dos momentos centrais da obra – e mais uma demonstração da enorme qualidade artística de Crebassa. Sozinha, oprimida dentro da sua própria mente, ela canta duas vezes, como se fosse um mantra, o que já havia aparecido na cena inicial: “dead stems of flowers come to life again – why not – why not my son?” A melodia, com variações, é praticamente a mesma da primeira cena, mas a orquestração e o canto diferem bastante: a serenidade do início deu lugar à agitação, ao desespero. A orquestra soa forte, mas Crebassa tem voz de sobra para não ser encoberta. Após uma longa pausa, a mesma frase (“dead steams of flowers…”) retorna com o texto e a melodia distorcidos e em um ambiente musical bem mais calmo, como se ela estivesse entorpecida, exausta, após a crise – uma oscilação de humor típica do lamento. Ela termina a ária dizendo não querer mais a lista, mas sim milagres.

John Brancy e Marianne Crebassa na sexta cena de Picturea Day Like This

É aí, nesse ambiente mais tranquilo, que aparece um colecionador de arte. Brancy, o barítono, outrora artesão, retorna com um estilo de canto bem diferente, com linhas mais longas e suaves. Ele permanece mais tempo na região grave, mas vai ao falsetto uma vez. Acompanhado pelos mesmos metais em surdina, ele mesmo recita a sua descrição na lista e completa: Eu tenho salas repletas de milagres”. Ele a conduz por obras de artistas de diversas épocas, escolas e estilos. E assim é a música: melodias mais líricas, digamos até mais românticas, transitam em meio a esse tecido orquestral tipicamente contemporâneo. Para que o colecionador seja feliz, contudo, é preciso que a Mulher o ame – Como eu poderia amá-lo? Não!” Constrangido, o solitário colecionador lhe indica o último nome da lista: Zabelle.

Anna Prohaska e Marianne Crebassa na sétima cena de Picture a Day Like This

O colecionador abre a porta, permitindo que a Mulher penetre no jardim de Zabelle. É como se ela estivesse entrando em um dos quadros do colecionador – e aqui nos lembramos de Alice, que atravessou o espelho da sala de casa e foi parar em um jardim. A Mulher volta a ler o seu catálogo, mas, dessa vez, a leitura é musicalmente diferente das anteriores, e, no final, Zabelle continua a sua frase – recurso este que será repetido mais adiante.

Zabelle é a única personagem da ópera que possui um nome: um nome armênio carregado de significados positivos – um dos significados é “comprometida com Deus”. Segundo a lenda, o Jardim do Éden ficava na Armênia; segundo a História, sob o domínio dos otomanos, há exatamente um século, o povo armênio foi vítima de um genocídio. Fora a Mulher, Zabelle é o único personagem que não se confunde com nenhum outro, que ganha uma intérprete exclusiva: a ótima soprano austríaca Anna Prohaska.

A tarde já estava caindo, o tempo estava chegando ao fim. Na orquestra, a repetição enfática das notas Mi bemol e Ré (que já haviam soado ao fim de cada encontro frustrado) cria um clima de suspense. No jardim paradisíaco, além de Zabelle, a Mulher diz ver um longo caminho de árvores, um homem adormecido em um banco, um menino pequeno lançando o seu barquinho de papel nos córregos que irrigam o jardim, uma menina brincando em um balanço… tudo ao som de uma música. Ouvem-se sons de pássaros vindos da orquestra. Finalmente, ela tinha encontrado alguém realmente feliz! Zabelle, no entanto, que parece ser uma imagem da própria Mulher, lhe diz: “Imagine um dia como este. A luz do sol dá lugar a longos rastros de sombra ao anoitecer. Meu jardim se torna escuro – e à luz das estrelas, homens forçam os portões de metal: eles ocupam o parque” – na orquestra, ouvem-se sons de fanfarra – Eles tomam a casa e tudo (…). Deixo cair meu bebê. Ele não parece bem – frio, frio – não me lembro do quanto gritei. Sem criança, sem barquinho de papel, sem balanço ou marido…”. Zabelle mostra que um momento, uma paisagem, um “quadro”, não é o suficiente para determinar a felicidade de uma pessoa. E conclui: “Eu sou feliz apenas (…) porque eu não existo”. Zabelle estende o botão para a Mulher, mas há uma barreira que as separa.

Para representar o jardim paradisíaco de Zabelle, a mais bela cena da ópera, Daniel Jeanneteau e Marie-Christine Soma envolveram o palco com projeções dos quadros químicas do artista plástico franco-marroquino Hicham Berrada. Vivas, belas, coloridas, mas químicas, artificiais, uma ilusão. No programa de sala, Jeanneteau comenta que a ideia era criar um paraíso ao mesmo tempo suntuoso e inviável: O trabalho de Hicham Berrada é extremamente belo plasticamente e com a vantagem de poder representar uma floração de vegetais sem utilizar flores (…). As obras de Hicham Berrada, seus ‘aquários’, são, em efeito, meios absolutamente impróprios à vida: são, na realidade, substâncias químicas extremamente perigosas, mas que produzem essa aparência de vida e de esplendor”.

Acima, já comentei que Zabelle, por mais de uma vez, continua a frase que a Mulher estava cantando. Outra característica constante do dueto entre a Mulher e Zabelle é que enquanto uma canta uma linha mais longa narrando algo, a outra faz curtos contrapontos na região mais grave. Embora Crebassa e Prohaska tenham timbres bem distintos, suas vozes se combinam perfeitamente, reforçando a ideia de que há uma ligação entre elas – são a mesma pessoa, Zabelle é uma imagem da Mulher, ou algo do gênero.

No enigmático final, quando, segundo a narrativa da Mulher, a cena inicial retorna, as mulheres que a observam falam que a página havia sido arrancada do vasto livro dos mortos, e ninguém poderia alterar isso. A Mulher sorri e mostra-lhes o botão brilhando na palma de sua mão.

O final, embora enigmático, deixa claro que o botão brilhante, mais que um brilho de esperança ou uma luz para a compreensão da vida, como as lamparinas de Kisha Gotami, se contrapõe ao fatalismo do “livro dos mortos”. Os frutos da vida e a felicidade não são conceitos tão simples, tão bem determinados, não podem ser determinados em um único dia, não cabem em uma folha, não podem ser listados – Eu detesto listas”, diz Zabelle.

Acima de tudo, porém, não podemos perder de vista que, por ser um conto de fadas, uma jornada mental, a situação da perda do filho deve ser tomada em um sentido figurado, e não literal. Em outras palavras, Picture não me parece ter o luto por tema. Na obra, estão presentes as frustrações da vida de uma mulher que, como todas as mulheres — ou todas as pessoas –, inclusive Zabelle, cria um paraíso de ilusões, mas, na vida real, enfrenta um mundo diferente e imprevisível, passa pelas mais duras perdas e separações, sucessos e desilusões, tanto no campo pessoal, na vida amorosa, quanto no intelectual ou profissional. “Eu sou feliz apenas (…) porque eu não existo”, diz Zabelle, em meio a seu paraíso “suntuoso e inviável”.

Nesse sentido, além das fontes citadas por Crimp e das duas obras de Lewis Carroll contando as aventuras de Alice, é impossível não nos lembrarmos de Candide, de Voltaire. É outra saga de encontros (e desencontros) concebida no formato dos contos de fadas, que parte da ilusão — fatalista e alienante — de que vivemos no melhor dos mundos possíveis, mas os personagens não demoram para revelar as suas infelicidades. Voltaire escreveu Candide fortemente impactado pelo terremoto que destruiu Lisboa e pela Guerra dos Sete Anos: duas tragédias, uma natural e a outra provocada pelo homem. Em Candide, no final do capítulo 12, em viagem de navio da Europa para a América do Sul, a velha (que, apesar de sua origem nobre, não tem nome, como ocorre nos contos de fadas e com os personagens de Crimp), após ter narrado as desgraças por que passou, propõe a Cunegunde (na tradução de Mário Laranjeira): levai cada passageiro a contar-vos a sua história; e se houver um só que não tenha amaldiçoado a vida com frequência, que não tenha dito muitas vezes a si mesmo que era o mais infeliz dos homens, atirai-me ao mar de cabeça”. Após ouvir os outros passageiros, Candide e Cunegunde concluem que a velha tinha razão. Mais adiante, no capítulo 24, Candide julga ter visto um casal realmente feliz: um monge e uma moça. Martino, o criado de Candide, não se ilude: Aposto que não [são felizes]”É só convidá-los para jantar”, disse Candide, e vereis se estou enganado”. A moça era Paquette, uma prostituta infeliz que havia passado por variados males e que sempre tinha que simular felicidade diante dos seus clientes. O monge, o irmão Giroflée, revela-se extremamente infeliz com a ordem a que pertence. Candide também acaba com um jardim, mas não o de Zabelle, que não existe, e sim o de Voltaire, o da vida prática, que precisa ser incessantemente cultivado: “Il faut cultiver notre jardin“.

Se o leitor me permitir mais uma comparação, dessa vez do mundo da ópera, cito Les Contes d’Hoffmann, de Offenbach. Quando, diante de Zabelle, a Mulher resume os resultados dos seus encontros, ela fala: O colecionador era solitário; a compositora, obcecada por si mesma; os amantes não se amavam; e o artesão – um pobre homem arruinado”. Nos Contos, Hoffmann resumiu seus três malsucedidos encontros amorosos: Olympia! Despedaçada!… Antonia! Morta!… Giulietta ah!”. Na ópera de Offenbach, cada amor ideal que Hoffmann parece encontrar acaba por se revelar impossível, da mesma forma que a felicidade é inalcançável para cada personagem de Picture. Em ambas as óperas, o protagonista, que é quem está narrando a história, sofre um processo de aprendizado ao longo de cada encontro; em ambas as óperas, cada encontro traz um estranhamento e representa um caminho em busca do autoconhecimento. Outra similaridade entre as duas obras é que cada quadro tem o seu próprio ambiente musical próprio – isso sem que as respectivas obras deixem de ter uma unidade.

Há, contudo, uma semelhança mais interessante entre as óperas de Offenbach e de Benjamin: a identificação de um cantor (ou grupo de cantores) com mais de um personagem – e de um modo que vai muito além de mera economia de elenco. Nos Contos, a misteriosa figura de uma espécie de Mefistófeles está sempre presente e é feita pelo mesmo barítono: Lindorf (no prólogo e no epílogo), Coppelius (no primeiro ato, o de Olympia), Dr. Miracle (no segundo ato, o de Antonia) e Dapertutto (no terceiro ato, o de Giulietta). Algumas vezes (e é ótimo quando isso acontece), é a mesma soprano que faz Stella, Olympia, Antonia e Giulietta, deixando claro que são facetas da mesma pessoa. Em Picture, um casal formado por uma soprano e um contratenor faz tanto o casal de amantes quanto a compositora e seu assistente; o mesmo barítono faz tanto o artesão quanto o colecionador. Isso nos permite um reconhecimento do cantor ou casal quando ele retorna em situação diversa, trazendo uma sensação de que são representações, talvez arquétipos, não pessoas específicas e bem definidas – o que ganha mais força quando nos lembramos que toda a jornada se passa na mente da Mulher.

Se os protagonistas das duas óperas têm em comum que são ambos narradores e que sofrem um processo de autoconhecimento em sua jornada, há uma importante diferença: nos Contos o protagonista narra os seus amores e, portanto, se envolve emocionalmente a cada encontro e tem uma participação em cada insucesso; em Picture, a Mulher mantém certo distanciamento, de modo que o seu confronto com o estranho se torna até mais evidente.

Para encerrar, só me resta insistir no privilégio que foi ter podido testemunhar essa estreia mundial, com direção musical do próprio compositor, com um elenco impecável por ele escolhido, e, da orquestra à direção cênica, com a equipe que costuma acompanhar o seu trabalho e as suas criações.

A ópera, sem dúvida uma das mais importantes estreias desse início de século, está disponível em vídeo na Arte e na Medici. Vale a pena conferir!


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